Esse é um tema sobre o qual eu escolho bem o que trazer pra internet. Porque talvez o que eu tenha pra dizer não soe muito confortável. Minha tese principal é que não tem solução simples e a linha tênue das responsabilidades e limites está borrada. Colocar a lupa e tentar sair dos jogos de culpa pode acabar soando defesa de um lado ou acusação ao outro, mas vou humildemente dividir alguns pensamentos.
Antes de continuar a leitura, preciso estabelecer um combinado: não espero que você concorde comigo, mas que a gente consiga dialogar e sair melhor do outro lado. Reforçando também que sim, estou falando para um recorte da população, esse texto não é sobre pessoas em condições de trabalho precarizado.
Pra começar: saúde mental não se restringe ao ambiente de trabalho e é um tema que atravessa camadas pessoais, sociais, políticas e econômicas.
Como não darei conta (nem me proponho) de tratar todos esses aspectos, aqui o foco será o ambiente corporativo.
Nos últimos anos, a pauta entrou com força nas empresas. Demos nome aos diagnósticos, normalizamos o “tá tudo bem não estar bem”, investimos em políticas de bem-estar.
Já vi de tudo:
– Empresa que ofereceu aula de yoga
– RH que organiza a semana do bem-estar enquanto a equipe faz hora extra todos os dias
– Ambientes em que "ficar bem" vira meta, KPI ou mais uma responsabilidade silenciosa nas mãos de quem já está sobrecarregado
O que percebo na minha experiência como consultora e professora presente diariamente nas empresas é que estamos tentando lidar com esse assunto de forma fragmentada, priorizando o aspecto individual da saúde mental e aí mora um problema.
Então para começar a organizar as ideias, meu convite é que você reserve um tempo para refletir nestas perguntas:
– O que é responsabilidade do indivíduo?
– O que é responsabilidade das empresas?
– O que é responsabilidade governamental?
A sensação que me dá é que o peso está mal distribuído — e, no final do dia, a conta tem caído direto no colo da liderança (principalmente média gerência) como representante da entidade "empresa".
Quem senta na ponta, paga a conta?
Nos últimos anos, vi lideranças sendo convocadas a acolher, escutar, engajar, sustentar emocionalmente… tudo isso enquanto elas mesmas estavam exaustas.
Se o time adoece, a culpa é da liderança.
Se alguém pede demissão, a liderança falhou.
Se o clima pesa, faltou habilidade emocional do gestor.
E pra engrossar esse caldo, todo ano sai alguma pesquisa dizendo que as pessoas saem das empresas por conta das lideranças tóxicas. Uma das mais citadas é o estudo da McKinsey Health Institute (2022), que aponta que a principal causa de burnout entre os profissionais é a má qualidade da liderança direta.
Mas será que as pessoas acham isso mesmo? Ou essa resposta vem enviesada baseada em um repertório restrito de mundo, que não permite enxergar com outras lentes os outros ângulos possíveis da saúde mental?
Será que todas as camadas de liderança deveriam ter as mesmas cobranças e responsabilidades? Será que donos de pequenas empresas deveriam ser tratados da mesma forma que empresas gigantes? (Não sei se tenho a resposta, quero abrir a conversa)
Se a gente parasse de culpar a liderança, para que outros temas olharíamos? (Não estou querendo retirar a responsabilidade dessas pessoas. O convite é pra expandir a análise.)
Toda vez que eu tento abordar o assunto por este ângulo e questiono o termo - liderança tem que dar exemplo - alguém vem me dizer que parece uma desculpa pra eximir as lideranças de suas responsabilidades. Definitivamente não é isso que estou propondo. Dentro de nosso arranjo corporativo as pessoas nestes cargos tem sim mais privilégios e responsabilidades, isso não quer dizer que elas não sejam seres humanos e que deem conta de ser exemplo em um mundo incerto e imprevisível.
A saúde mental na atualidade brasileira é um buraco mais embaixo. Uma solução isolada — por melhor intencionada que seja — não resolve esse emaranhado inteiro.
Fora isso, há mais coisas entre o Céu e a Terra do que nossa vã filosofia.
Subjetividade humana e os significados de saúde
Algumas experiências escapam à lógica. Talvez não exista grade curricular (somente a dos psicólogos?) ou palestra que seja capaz de ensinar alguém a lidar com o sofrimento de outro ser humano.
Trazendo uma interpretação livre de uma reflexão do Michel Alcoforado no LinkedIn (sobre a série Adolescência, mas vou transpor pra nossa realidade): a vida escapa.
Porque a subjetividade não cabe em plano de desenvolvimento individual. Não há estrutura institucional capaz de dar 100% conta da subjetividade de alguém num mundo em constante mutação.
Não vai dar pra transformar todos os líderes em terapeutas. E também não adianta mandar todo mundo pro psicólogo e achar que o problema está resolvido. Esse é mais um desafio do nosso tempo — está acontecendo ao vivo e estamos juntas aprendendo a lidar. É uma crise imensa, e precisamos admitir isso urgentemente.
Mas se nem tudo é mensurável, o que conseguimos fazer com o que é? Como olhar com mais clareza para as responsabilidades possíveis?
Sentou na mesa, sorriu, dividiu?
Ops, aí nãoooo - a divisão não será por igual, cada um vai precisar se responsabilizar pelo que “consumiu” (dentro dos seus privilégios, desafios e restrições)
O jogo de culpa não vai nos levar a nada, juro pra vocês. Estamos gastando muito tempo brigando entre a gente e pouco pensando em saídas coletivas para nossos problemas.
Garçom traga a conta!
Nada disso é uma desculpa pra vocês não fazerem nada. Meu convite aqui é colocarmos energia em iniciativas práticas e tangíveis que não estão sendo tão comentadas, mas impactam diretamente a saúde das pessoas.
Pegue a sua influência pela mão (ou pelo crachá) e bora falar sobre isso:
Reduza o excesso de tarefas: muito se fala que a IA pode fazer mil coisas. Que tal começar mapeando tarefas repetitivas ou aquelas que não têm clareza se estão realmente conectadas com a estratégia e automatizá-las?
Evite hora extra: 8 horas por dia, 5 dias por semana, já parece bastante coisa. Se seu time está trabalhando muito além disso, não seria possível organizar melhor a agenda?
Comando e controle já era: A ideia de que “manda quem pode e obedece quem tem juízo” não ajuda na construção de um ambiente saudável, se queremos ver o melhor das pessoas, precisamos rever nosso formato de tomada de decisão a trabalhar para distribuição do poder.
Salários justos: dizem que dinheiro não traz felicidade, mas ajuda bastante, né? Comprar alimentos de qualidade, conseguir viajar e se divertir aos finais de semana, morar em uma casa confortável — tudo isso coopera para a manutenção da saúde
Amplie o repertório das lideranças: dentro do nosso modelo hierárquico tradicional, o cuidado com as pessoas é centralizado nas lideranças. É importante preparar essas pessoas para entenderem os limites de seu papel — e, se for o caso, reconhecer quando é o momento de encaminhar o colaborador para uma pessoa psicóloga
Ter políticas explícitas de apoio a colaboradores com diagnóstico de doenças relacionadas à saúde mental
Cuidado com as ferramentas de medição de clima: se seu time está com medo de ser mandado embora ou não confia na ferramenta, será que dirão a verdade? As trocas no cotidiano (online ou presencial) são muito relevantes na hora de saber se alguém está bem
Crie e participe de rodas de conversa mensais sobre o tema e normalize trocas sobre o assunto
Reflita sobre os limites da sua vida pessoal e até onde a empresa pode (ou não pode) te ajudar a resolver suas questões
A construção de nossa saúde mental é um quebra cabeças. Cuidar daqueles que você tem influência já pode fazer uma diferença imensa pra você e pra quem está ao seu redor.
No fim das contas, saúde mental não é luxo nem bônus. É base. E é urgente repensar — com coragem — o que isso significa no seu crachá, na sua agenda e no seu time.
Tem mais iniciativas? Me conta nos comentários do Substack o que você faria ou o que sua empresa tem feito?
NR-1: o que muda a partir de maio de 2025
A nova versão da NR-1, norma regulamentadora do Ministério do Trabalho, passa a ser acompanhada formalmente a partir de maio. Pela primeira vez, ela inclui os riscos psicossociais — ou seja, reconhece que as condições emocionais também são parte da gestão de saúde e segurança no trabalho.
Muita gente ainda não entendeu que a NR-1 não é só mais um item de compliance. Ela muda o patamar da conversa: agora, o risco emocional entra formalmente na mesa como parte da segurança do trabalho. Não é mais só somente EPI e ergonomia. É sobre ambiente, gestão, e consequências reais da sobrecarga. E não entender isso pode sair caro — em ações trabalhistas e em reputação.
A norma não detalha soluções, mas obriga as empresas a considerarem esse tipo de risco nos seus planos de prevenção. É um passo importante. Mas ainda vai rolar muita bateção de cabeça já que as regras de medição não estão bem definidas.
Informações úteis
O Brasil é o país mais ansioso do mundo, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS).
O Brasil é o quarto país mais estressado do mundo, segundo o novo relatório global World Mental Health Day 2024
Os afastamentos por transtornos psicológicos bateram recorde em 2024, segundo o Ministério da Previdência Social
Três perguntas pra levar pro trabalho:
▌ 1. Qual o plano combinado entre os times pra quando alguém levanta a mão e diz “não tô bem”?
▌ 2. Onde a saúde mental aparece de forma explícita e urgente na estratégia?
▌ 3. Quem cuida de quem cuida?
Se tanta coisa é esperada da liderança, qual suporte adicional está sendo oferecido a essas pessoas?
"PRECISO QUE ALGUÉM FALE ISSO NA MINHA EMPRESA"
sim eu sei que muitos de vocês pensam isso
Através da Subversiva, eu e meus parceiros desenvolvemos projetos e treinamentos sobre:
– Saúde mental nas estruturas de trabalho
– Liderança e gestão do tempo
– Comunicação e cultura organizacional
– Futuro do trabalho
Em 2025, também integramos os impactos da IA nessas frentes.
Quer saber mais? Vamos marcar um café e eu te apresento nosso portfólio.
Sim, esse é o texto mais completo e ponderado sobre esse tema que eu já li ❤️ Complementando, eu acho que o Brasil tem um desafio imenso que é o fato das nossas relações de trabalho ainda serem pautadas por uma lógica dos tempos da escravidão e isso só se agravar com a escalada neoliberal dos últimos tempos. Pensar em soluções coletivas nesse sentido é urgente.
É realmente um tema muito difícil esse. Eu, por exemplo, precisei virar líder pra entender que diversos buracos de gestão que afetam a saúde mental dos funcionários tão muito mais embaixo do que simplesmente nos lideres. Texto maravilhoso.