Tem semanas em que quase tudo que leio sobre liderança parece vir de um lugar que não fala comigo. Falam bonito, citam Harvard, trazem fórmulas com nomes em inglês, apresentam cases de unicórnios. Pouca coisa responde aos desafios atuais que vejo nas empresas brasileiras ou se parece com o que vivi por anos nesse ambiente.
Você já parou pra pensar que os modelos de liderança que nos ensinaram não foram criados pra gente? Foram importados, embrulhados num inglês corporativo e entregues como se fossem universais. Mas a América Latina não é o Vale do Silício.
Não sei exatamente quando comecei a desconfiar desses modelos prontos. Mas sei que não é por acaso que eu tô metida num mestrado sobre América Latina — uma curiosidade que virou pauta, que virou pesquisa, que virou essa newsletter.
Muita coisa que funciona nos Estados Unidos e Europa parte de uma lógica que aqui parece ficção científica: meritocracia, autonomia e uma suposta estabilidade organizacional.
Aqui lidamos com realidades múltiplas, zonas de ambiguidade, crises políticas cíclicas, contradições e uma enorme parte da população que sequer teve acesso ao ensino de qualidade.
Mesmo assim, boa parte das lideranças brasileiras insistem em aplicar fórmulas prontas. Já vi planilhas lindas pra medir engajamento que ninguém preencheu. Metodologias caríssimas de feedback que viraram reunião de 10 minutos no meio do caos. Tentativas de "colar e copiar" práticas que não nasceram aqui e de usar régua importada pra medir cenário local.
Lembro de um ciclo de avaliação de desempenho que uma pessoa C-level teve a grande ideia de implementar, anos atrás, inspirado numa startup estrangeira. Tudo era bonito no papel. Mas ninguém conseguia parar pra escrever as devolutivas, as pessoas não sabiam direito como aquilo ajudava na prática. Acabou virando um teatro burocrático em que só sobrava pressão pra todo lado.
Enquanto isso, seguimos consumindo quase nada do que é produzido sobre trabalho em português e espanhol — como se liderar na América Latina não passasse por escutar o que ela mesma diz.
Vários pensadores já falaram isso com mais elegância do que eu: o desenvolvimento na América Latina precisa partir das nossas realidades, não de modelos externos (referências no final do texto).
Podemos extrapolar esse pensamento pra gestão. Uma liderança que leve em conta o nosso contexto precisa entender os atravessamentos sociais e históricos que moldam o cotidiano das pessoas.
Liderar aqui é lidar com contradições. É criar confiança onde tudo parece frágil. É ver o jeitinho brasileiro como método de criatividade e inspiração pra sobreviver a realidade desafiadora.
Talvez não dê pra escrever um manual único. Talvez a graça seja essa: saber que aqui, liderar é criar o caminho enquanto anda.
E tudo bem se esse caminho tiver curvas, improvisos e até umas gambiarras. Afinal, quem disse que um modelo bom de liderança precisa vir com certificado em inglês?
Assumir a complexidade do nosso contexto é subversivo.
Sinais de um momento latino (e o que a gente faz com isso?)
• As empresas que já estão fazendo
Mercado Livre e Nubank mostram que, quando querem, empresas de origem latina conseguem operar de forma conectada. Ambas atuam em vários países da região, com times plurilíngues e projetos que reconhecem as especificidades de cada lugar. Não é sobre capacidade, é sobre escolha estratégica.
• A barreira do idioma ainda existe (mas dá pra atravessar)
Fui traduzida simultaneamente pra inglês e espanhol em mais de uma palestra. Ou seja, quando há interesse, as pontes aparecem.
Mesmo assim, no dia a dia, seguimos consumindo pouquíssimo conteúdo em espanhol. Isso nos deixa meio de costas pra nossa vizinhança.
Quase todo brasileiro entende bastante do que está sendo escrito e dito em espanhol. Que tal legalizar o Portunhol e começar a estudar um idioma onde a gente já sai em vantagem?
• A Geração Z tá resgatando o orgulho de ser latina
No TikTok, tem criadora dizendo que não dá pra ser “clean girl” porque é latina com orgulho. O exagero, a cor, a intensidade, o improviso: tá tudo voltando como estética desejada.
Fernanda Torres seduziu o mundo, Bad Bunny tá no topo das paradas e o Bruno Mars quer ser nosso amigo.
Está na moda ser latino. E isso abre uma brecha imperdível pra quem quiser liderar com mais intenção e menos imitação.
Se é tendência, também é oportunidade
Esse movimento todo não é só comportamento — é mercado, é identidade, é posicionamento.
Se a gente não aproveita esse momento pra construir referências nossas, corre o risco de continuar pegando emprestado o que vem de fora.
O mundo tá olhando pra cá. E a gente?
Três sugestões pra continuar esse papo (e transformar em prática):
1. Leve essa pergunta pra sua próxima reunião de liderança:
“O que neste time só é possível porque estamos na América Latina?”
Deixe a pergunta pairar. As respostas podem surpreender.
2. Faça um microcanvas da sua liderança local:
Qual realidade social seu time enfrenta que não cabe num modelo padrão?
Que tipo de cuidado, improviso ou gambiarra você teve que usar como liderança nos últimos meses?
O que isso revela sobre sua forma de liderar — e o que deveria virar manual?
3. Prática de observação nos próximos 5 dias:
Quantas decisões você toma pensando “isso funciona lá fora”?
Quantas você toma com base no que acontece no entorno real do seu time?
Vale anotar num post-it. A contagem já diz muito.
Referências que acabaram de sair do forno:
[Vira-lata Exportação ( Podcast Consumoteca)] — sobre como a gente se vê (e é visto) fora do Brasil. Vale o play.
[Posts recentes do MMIzodoro] — Em resposta ao SXSW, fez reflexões sobre a América Latina, Festas, Criatividade e mais.
Vamos estudar junto?
Tô amando que vocês estão super engajadas com meu mestrado. Sério, dá vontade de mandar boletim escolar pra vocês! Então aqui vão algumas referências que estão me ajudando a repensar trabalho, liderança e desenvolvimento a partir das nossas lentes.
Off: coisas mais cabeçudas, que não estão necessariamente na moda, que podem não parecer diretamente ligadas a trabalho, mas que pra mim são. Tem muitaaaa coisa, mas temos todo tempo do mundo. Nas próximas news farei questão de trazer mais referências latinas.
Conheça a História da CEPAL - Comissão Econômica para a América Latina
Karina Batthyány – As políticas de Cuidado na América Latina (em espanhol)
Habla y Habla
Esse texto não pretende esgotar o assunto ou ter razão.
Então dúvidas, novas referências e pontos de vista? Vamos continuar a conversa.
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a maior de TODAS!!!
Ah isso me lembrou um material interesantíssimo chamado "O Brasil que o Brasil quer Ser", desenvolvido por Lourenço Bustani (Mandalah). O material trouxe uma ideia inovadora para um posicionamento do Brasil aí fora e para os Brasileiros, rompendo o complexo de vira-lata que muitos sentem e criando uma nova história para nós, mais conectada a nossas potências socioambientais e capacidade de diálogo. É muito interessante. Enfim, penso que liderar aqui é sobre reconhecer mais nossas potências! Excelente texto!